Uma vista de fora
Uma vista de fora - 10 anos de PyLadies São Paulo
Introdução
Olá, tudo bem? Primeiramente fico muito feliz e muito honrada de ser convidada a dar esta palestra hoje. O décimo aniversário é um marco importante para uma comunidade como a de vocês. Mostra que ela é importante para as pessoas, que muitas pessoas a amavam o suficiente para cuidar dela ao longo dos anos.
Também é uma oportunidade para refletir sobre o passado e como chegamos até aqui, bem como para pensar sobre o futuro. Todas nós PyLadies queremos que esta organização continue, cresça e floresça. Mas sabemos bem que a vida acontece. As pessoas vêm e vão, com mudanças em empregos e carreiras, evoluções da tecnologia e todas as coisas de família, saúde, e tudo. Então não é comum que uma comunidade como esta dure dez anos, e continue a partir daí. Em outras palavras, o seu décimo aniversário é uma coisa importante, como dizemos em inglês, "a big deal".
Esta ocasião é importante para mim porque conheço o grupo de PyLadies São Paulo por quase toda a vida dele. No Python Brasil [12] conheci as organizadoras deste novo grupo, PyLadies São Paulo, e me lembro do orgulho e entusiasmo que elas demonstraram. (a propósito, guardei aquela camiseta e a usei até que ela estivesse totalmente gasta.)
No ano seguinte, eu dei uma palestra no segundo aniversário, e depois permaneci conectada com as PyLadies de São Paulo, encontrando-me com elas em conferências em todo o mundo e online durante a pandemia.
Na verdade, fiz tantos amigos e amigas brasileiras que decidi estudar português há alguns anos, e desta vez posso falar com vocês em português. Quando visitei o Brasil em 2016 prometi que da próxima vez poderia falar português. Infelizmente, ainda não pude visitar outra vez e hoje, com o regime anti trans atual no meu país, não me sinto confortável viajando internacionalmente. Mas estou pronta se as coisas mudarem.
Então, tendo visto esta comunidade durante tantos anos, sinto-me quase como uma tia das PyLadies São Paulo, e por isso é muito especial para mim falar com vocês. E espero que a minha visão de fora desta comunidade mostre tanto as ameaças e os desafios que vocês podem enfrentar no futuro quanto as qualidades que fazem este grupo tão especial.
Livros
Antes de começar a palestra, deixe-me mencionar mais algumas coisas. Sou autora do Quick Python Book, agora na quarta edição, e com um prefácio de Luciano Ramalho. Sempre fui grata pelo apoio dos brasileiros, e pedi à minha editora, Manning Publications, alguns códigos para cópias (ebooks) gratuitas do meu livro e um desconto em homenagem ao evento. As organizadoras vão compartilhar/compartilharam os detalhes.
Conexão
Eu disse que fiz muitos amigos nesta comunidade, mas também devo dizer que sempre fico feliz em ter mais. Estou aposentada agora, então não estou tão conectada com o cenário atual de empregos na área de tecnologia, mas se alguém quiser se conectar para conversar sobre outros assuntos, estou aberta a isso, seja em inglês ou português. Além disso, estou mais interessada atualmente em música, arte e leitura. Acabei de terminar uma aula sobre música brasileira com um cara no Rio, e posso dizer que descobri o Veríssimo pelo menos alguns meses antes da sua morte recente. Então, se você quiser conversar sobre essas áreas, ficarei feliz em fazê-lo. Você pode me encontrar no LinkedIn, Facebook, Bluesky ou no meu site.
Sobre a palestra
A última coisa é falar um pouco sobre esta palestra. Primeiro não vou usar slides. Não gosto deles, porque na minha opinião elas destroem ativamente a inteligência. Sim, mostrarei algumas imagens no fundo, mas a coisa mais importante será minha voz. Se vocês quiserem ler as palavras, devido ao meu sotaque ou o que seja, o texto está em naomiceder.tech/blog.
Além disso, tenho que admitir que a primeira parte da palestra contém coisas sombrias. Aqui às vezes dizemos que existe uma antiga maldição chinesa que diz "Que você viva em tempos interessantes." Na verdade, não existe nenhuma evidência de que seja chinesa, nem antiga, mas sim, sem dúvida é uma maldição, e também uma descrição justa da nossa situação.
Então vou começar com todos os problemas que enfrentamos, mas prometo que o final será otimista.
Por fim, não vou falar muito de temas técnicos. Suponho que, estando aposentada, eu tenha o luxo de pensar mais na humanidade, a arte, a música, etc. e eu diria que no geral assuntos técnicos são detalhes de implementação que nos dizem pouco sobre as coisas mais importantes. Para usar o lema que aprendi aqui no Brasil há 9 anos, "Pessoas > tecnologia."
Desafios e ameaças
Então
Duas semanas atrás eu vi a palestra que dei no segundo aniversário. Não gosto muito de ver os meus vídeos antigos. Sim, gostei do meu cabelo (menos grisalho) e dos meus óculos. E gostaria de ter 8 anos menos, claro.
Na verdade, agora essa época parece um mundo diferente. O vídeo me lembrou de como as coisas eram quando PyLadies SP começou (e tantos outros grupos de PyLadies). Acreditávamos que iríamos mudar e melhorar o mundo com tecnologia, que a inclusão continuaria a crescer, e a única coisa que deveríamos fazer seria ensinar mais mulheres e pessoas marginalizadas as maravilhas do Python e da tecnologia.
Ser mulher, ou LGBTQI+, ou uma pessoa não branca parecia ter menos desvantagens, com a esperança que as coisas fossem ainda mais favoráveis no futuro.
Alunos dos bootcamps conseguiam bons empregos e carreiras boas, e as grandes empresas sempre precisavam de mais pessoas, e ofereciam benefícios generosos, como comida, transporte, serviços e até mesas de pebolim e pingue-pongue. (Eu nunca entendi isso) Os salários eram ótimos, e as oportunidades estavam por toda parte, e se não encontrasse um emprego no próprio país, seria fácil migrar para fora.
Havia problemas, sim. Havia homens sexistas e machistas, que muitas vezes não aceitavam mulheres e outras minorias. Mas a opinião geral era a nosso favor. A mudança climática era uma preocupação, a ultra-direita estava surgindo em vários países, mas tudo estava (ou parecia) sob controle. Ou assim acreditávamos.
Agora
Nos oito anos seguintes, como dizemos, a vida aconteceu. Os partidos da direita ganharam mais poder, e cuidar das pessoas tornou-se um pouco menos importante.
Com a chegada da pandemia, tudo mudou. Ficamos isolados, trabalhando remotamente, lutando para manter um sentido de conexão e comunidade por meio de ligações com amigos, eventos no zoom, etc. Algumas pessoas morreram, outras lutaram contra a Covid longa, todos sentíamos mais sozinhos. Conferências e meetups pararam ou até morreram.
Finalmente, superamos a pandemia. As coisas reabriram e recomeçaram, mas não era o mesmo de antes. Eu diria que a pandemia marcou a transição para uma nova era em que estamos agora. O mundo de hoje é mais sério e menos gentil. Esta é a era do "hard tech". As empresas não se importam mais nem com empregados, nem com consumidores, as startups não estão mais tentando mudar o mundo.
Menos consideração
Elas agora estão focadas em conquistar clientes maiores e mais poderosos, grandes corporações e governos. As forças armadas e as finanças agora são preferidas. Lucros e dados concretos são preferíveis a mudar o mundo, e considerações éticas são menos importantes. Lembramos quando o lema do Google era "Não seja mau"?
Agora há menos consideração pelos funcionários e vemos um movimento universal de "volta ao escritório" "Back to the office" e uma redução de benefícios do escritório. Também estamos vendo demissões. As empresas não estão dispostas a contratar pessoas formadas em bootcamps e preferem oferecer contratos temporários em vez de vagas permanentes.
E mesmo lucrando com open source software, essas empresas fornecem pouco suporte às comunidades que o produzem. A PSF teve que parar de subsidiar eventos e conferências devido à falta de recursos, apesar do fato que Python é atualmente a linguagem mais popular do mundo e vital para a IA e a ciência de dados, que estão gerando riqueza. Sem mais apoio financeiro, as conferências e meetups serão impossíveis, o que será prejudicial ao software do qual dependem, mas elas parecem não perceber nem se importar.
Movimentos da direita
Ao mesmo tempo, movimentos de direita estão crescendo e governos antidemocráticos estão se tornando mais comuns. O resultado é que as empresas estão abandonando a diversidade e a inclusão e elas se tornaram um alvo político da direita. Sim, isso é mais óbvio com o governo de Trump, mas a influência dos EUA é amplamente sentida em muitos países. E a atitude anti diversidade permite que homens insultem mulheres e minorias, e torna mais difícil para pessoas não homens brancos conseguirem empregos e mantê-los.
Esse movimento já está reduzindo oportunidades, com mais restrições à imigração e até mesmo (no caso dos EUA) tarifas, que são prejudiciais a todos.
As guerras
E claro, agora temos guerras, na Ucrânia, em Gaza, na África, e ameaças de ainda mais guerras ao redor do mundo. Membros da comunidade Python de todos os lugares foram afetados, e para ser sincera, parece que a situação está piorando.
Todos esses fatores estão nos separando e nos enfraquecendo no exato momento em que precisamos trabalhar juntos.
A IA
Além disso, agora vemos que a IA parece estar dominando o mundo, uma força imparável. Sim, às vezes a IA faz coisas impressionantes, mas muitas vezes também cria problemas igualmente impressionantes. A IA tomou e usou a propriedade intelectual de muitos milhares de autores (inclusive eu) sem permissão e sem recompensa.
A IA também consome recursos a uma taxa incrível. Aqui na região de Chicago, as contas de energia estão disparando porque não temos energia suficiente para abastecer os parques de servidores do LLM e atender às necessidades das pessoas.
A IA também consome água potável e produz CO₂. O Google afirma que um prompt de texto "normal" consome uma pequena quantidade de energia e água e produz pouco CO₂. Parece, no entanto, que eles não estão incluindo os custos de todo o processo e infraestrutura. E, claro, nem todos os prompts são simples prompts de texto. Só podemos imaginar quantos recursos a mais são consumidos para produzir vídeos bizarros, imagens no estilo do Studio Ghibli e imagens de pessoas com 14 dedos. E agora, cada consulta de pesquisa do Google envolve IA, então mesmo pequenas quantidades de consumo precisam ser multiplicadas por bilhões todos os dias.
Outra consequência da IA será que os líderes empresariais acreditam que não precisam de desenvolvedores, especialmente os juniores. Já que a vibe coding supostamente pode fazer o mesmo trabalho, por que gastariam dinheiro (e tempo) contratando juniores? Agora, até mesmo graduados de universidades de prestígio estão com dificuldades para encontrar emprego, e os formados em bootcamps não têm chance.
É claro que isso não funcionará a médio ou longo prazo, nem para empresas nem para indivíduos. Mesmo que a IA pudesse substituir alguns programadores (e isso é verdade em pouquíssimos casos, na minha opinião), o que as empresas farão no futuro, quando não houver desenvolvedores de nível médio ou sênior, já que eles não foram contratados como juniores?
Há também preocupações com os efeitos da IA nos mercados. No momento, as avaliações estão altíssimas, em parte devido ao entusiasmo pela IA e à expectativa de que ela trará um crescimento incrível. Mas o que acontece se o crescimento não for tão incrível? Li recentemente um estudo que constatou que os ganhos de produtividade com a IA são, na verdade, bem pequenos, cerca de 3%. Se o milagre não acontecer, se (como acredito ser o cenário provável) os resultados da IA forem apenas positivos, mas não milagrosos, é provável que assistamos a uma quebra do mercado global, com consequências graves para todos.
O entorno
O maior horror que enfrentamos são as mudanças climáticas. Sem dúvida, as temperaturas globais estão subindo, de forma mais rápida e drástica a cada dia. Em todos os lugares, vemos ondas de calor, inundações, tempestades, incêndios florestais, chuvas torrenciais e muito mais. Ao mesmo tempo, o nível do mar está subindo e os sistemas climáticos estão mudando.
A maioria das pessoas e governos vê isso como uma emergência (o atual regime americano, infelizmente, não), mas ainda não estamos fazendo o suficiente para lidar com isso.
O que fazer?
Stockton
Por que estou contando isso? Não quero que todos fiquem tristes e deprimidas, mesmo que pareçam assim. Um fator na capacidade de sobreviver e superar momentos difíceis é reconhecer as dificuldades sem ceder. Isso se chama "efeito Stockton", em homenagem ao General Stockton, que foi capturado no Vietnã e sofreu torturas brutais. Apesar da tortura, ele se manteve firme e nunca desistiu, e finalmente conseguiu voltar para casa.
Mais tarde, Stockton disse ter notado (e vários estudos confirmaram isso) que homens otimistas irrealisticamente (que sempre diziam: "As coisas vão melhorar em breve, estaremos em casa antes do Natal", coisas do tipo) eram os primeiros a morrer. Como as coisas não melhoraram em breve, eles não voltavam para casa antes do Natal, e a decepção os enfraquecia e, por fim, os destruía.
No entanto, aqueles que reconheceram o quão ruins as coisas estavam e continuavam determinados a perseverar e tentar na esperança de superá-las algum dia foram os que tiveram mais probabilidade de sobreviver.
É por isso que estou lembrando vocês de todos os desafios e ameaças que enfrentamos. Mas a segunda parte também é importante: precisamos ter esse tipo de otimismo teimoso, informadas sobre os desafios, mas ainda determinadas a fazer o que pudermos para um dia superá-los.
Este tipo de otimismo é um ato revolucionário. Ou seja, como disse Noam Chomsky, "otimismo é uma estratégia para criar um futuro melhor. Porque, a menos que você acredite que o futuro pode ser melhor, é improvável que você assuma a responsabilidade de criá-lo."
Por que otimismo?
Por mais importante que seja enxergar os desafios com clareza, é igualmente vital considerar honestamente nossas razões para otimismo. Um fator vital para enfrentar todos os desafios que mencionei está ao nosso alcance. É a força unida de todos nós, a força da comunidade. E aqui, nesta comunidade, vejo três fortes fontes desse espírito de comunidade.
Python
Primeiro, a comunidade está no DNA de Python. A comunidade sempre foi uma parte importante de Python, o que uniu tantas pessoas com tantos interesses diferentes. Se você ainda não viu o documentário recente sobre Python, recomendo fortemente. Como disse Bret Cannon (um ditado que já peguei emprestado muitas vezes): "Vim pela linguagem, fiquei pela comunidade". E todos nós fazemos parte dessa tradição.
É o que manteve o progresso da linguagem durante várias crises. Em 2008-2009 a crise financeira levou a grandes perdas da PyCon US. Tivemos contratados hotéis, espaços de eventos e, como aconteceu, as empresas não tinham condições de enviar pessoas para a conferência. Pareceu possível que a PSF não poderia continuar. Mas como comunidade perseveramos e superamos.
Eu sei isso por experiência própria. Quando estava fazendo minha transição, tinha medo de perder minha conexão com a comunidade Python. Pensei que ninguém (ou poucos) me aceitaria, que eu ficaria sozinha. Na verdade, todos se esforçaram para garantir que eu me sentisse aceita. Sim, as coisas não eram perfeitas, mas no geral recebi abraços e apoio.
PyLadies
O segundo fator positivo é a tradição de PyLadies. PyLadies sempre fomentou um sentido de comunidade e apoio mútuo. Desde o início o objetivo foi que nós, mulheres, nos apoiássemos e nos ajudássemos a enfrentar os desafios de ser mulheres entrando em um mundo dominado por homens.
As primeiras organizadoras de PyLadies, Lynn, Esther, e Sophia me fizeram sentir bem-vinda, e, quando estava organizando os primeiros eventos de Trans*Code, elas foram minhas maiores apoiadoras e conselheiras.
Desde o início é uma tradição no almoço de PyLadies em PyCon e EuroPython incentivar as pessoas a compartilhar suas conquistas e serem celebradas. E espero não precisar lembrar vocês que o Brasil tem um dos movimentos de PyLadies mais fortes do mundo inteiro.
Mais importante ainda, PyLadies é uma organização de mulheres, mulheres dispostas a se unir e fazer o que precisa ser feito. E, na minha opinião, essa é uma das forças mais poderosas do mundo.
Cultura brasileira
A terceira fonte da unidade e comunidade que eu vejo talvez possa parecer estranha para vocês. Mas, como estrangeira, é bem claro para mim. É a cultura brasileira.
Sim, eu sei que toda cultura tem suas desvantagens, que nem todas as pessoas de um país, especialmente um país grande como o Brasil, compartilham os mesmos valores e normas. No entanto, acho que há algo especialmente propício à comunidade em vocês.
Viajei literalmente o mundo e conheci milhares de pessoas de diversas culturas. É claro que existem boas pessoas em todos os lugares. Mesmo assim, desde o primeiro dia em que cheguei ao Brasil, nove anos atrás, continuei a me sentir bem-vinda, formar conexões e encontrar amizades duradouras com brasileiros. Nenhuma outra nação me recebeu tão calorosamente. Vocês criaram meu lema favorito - Pessoas > tecnologia. (Outra camiseta que adorei e guardei até ficar gasta).
Não estou exagerando quando digo que agora tenho mais (ou quase) amigos brasileiros do que norte-americanos. São muitos para mencionar, mas quero contar um exemplo só. Quando a PSF me entregou o Prêmio por Serviço Distinto em PyCon em Salt Lake City, em 2023, a pessoa mais orgulhosa da plateia, a que me abraçou mais forte, não foi de Chicago, não foi dos EUA, nem da Europa. Foi um brasileiro, meu amigo Felipe de Morais. Nunca vou me esquecer disso.
Não sei por que vocês se importam tanto com os sentimentos dos outros... Não sei, mas acho importante que você ouça de uma estrangeira que eu nunca encontrei um senso de comunidade tão forte quanto entre vocês. Não é uma fraqueza, é um superpoder, e tenho certeza de que ajudará esta comunidade, não importa os desafios que o futuro traga.
Conclusão
Então, como eu disse no início, vivemos em tempos interessantes... Isso me lembra de uma citação de O Senhor dos Anéis:
"Gostaria que isso não tivesse acontecido na minha época", disse Frodo.
"Eu também", disse Gandalf, "e todos os que vivem para ver tempos assim. Mas isso não cabe a eles decidir. Tudo o que temos que decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado."
Eu sei que todas vocês nesta comunidade, assim como todos nós nas comunidades globais PyLadies e Python, temos a tradição de nos unirmos não apenas para sobreviver, mas para superar estes tempos interessantes.